quarta-feira, 11 de novembro de 2009

[Opinião] Ayahuasca: Estado Laico Discrimina Brasileiros Laicos?

Murilo Leme*


(Ayahuasca sendo preparada na região de Napo, Equador - Fonte: Wikipedia / Creative Commons -
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e7/Aya-preparation.jpg )


Esclareço, de saída, que não sou advogado, não entendo de leis e, pior, sou pessoa frequentemente mal informada (por exemplo, nem sei se mal informado se escreve com hífen, junto, ou separado).

Sofro entretanto do incoercível vício de pensar com a própria cabeça e, por isso, já escrevi algumas vezes acerca de aparentes contradições que vejo no estado laico brasileiro. Um estado laico cuja Constituição é resultado de um legislativo reunido sob a proteção de Deus; um estado laico em cujo papel-moeda consta a frase Deus seja Louvado; um estado laico onde, disseram-me, nas casas do Congresso há cruzes afixadas.

O mesmo estado laico que, em 1986, proibiu-nos de ver o filme Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godard, sob a alegação de ofensa aos dogmas da Igreja Católica. Um estado laico, portanto, onde os dogmas da Igreja Católica é que determinam o que os não-católicos podem ou não podem ver. Onde, aparentemente, cabe à Igreja Católica censurar filmes. http://oliveiradimas.blogspot.com/2009/01/je-vous-salue-marie-pouco-mais-de-23.html

Outro dia, conversando com um conhecido, ele chamou-me a atenção para outro aspecto, para o qual eu não havia ainda atentado: ao brasileiro secular é vedado o consumo de substâncias permitidas a brasileiros religiosos. Isto é, visto eu ser cético, o estado veda-me o consumo de substâncias permitidas a pessoas que crêem na espiritualidade, em Deus, num mundo espiritual etc. Os brasileiros religiosos têm licença para fazer coisas que os brasileiros não religiosos não têm, e isso perante o estado, notem bem, não perante suas igrejas ou agremiações religiosas. Tanto assim que as agremiações religiosas que promovem rituais onde se toma o chá exigem a assinatura de um documento, tipo termo de assunção de responsabilidade, para ser apresentado ao estado no caso de fiscalização. Assim, os brasileiros, mesmo religiosos, têm que submeter-se, pelo menos em certo sentido, à tutela do estado para poderem beber o (precioso?) chá. Já nas igrejas comuns isso não acontece: o fiel não tem, por exemplo, que assinar um termo de responsabilidade para poder ingerir hóstias ou bebidas alcoólicas (o vinho ministrado na santa ceia, em diversas igrejas, por exemplo).

Bom, não encontrei na Internet nenhuma lei com esse nome - lei número tal, por exemplo - tratando da substância que o conhecido mencionou, chamada Ayahuasca. Entretanto, a coisa mais próxima que encontrei de uma legislação foi o relatório final do Conad em http://www.ayahuascabrasil.org/index.php?op=legis101

Para mim ali fica meridianamente claro o privilégio dos brasileiros religiosos no consumo da substância. Inclusive o critério de ministração da substância fica nas mãos das entidades religiosas, e não de médicos ou profissionais de saúde; quero dizer com isso: se bem entendi, para uso religioso, não há restrições de licenciamento profissional. Uma entidade religiosa pode decidir se a pessoa ingerirá ayahuasca ou não. Entretanto, se a pessoa resolver tomar ayahuasca fora do contexto religioso, as vedações começam imediatamente. Vejam esses três inefáveis parágrafos no texto do Conad:

36. Tradicionalmente, algumas linhas possuem trabalhos de cura em que se faz uso da Ayahuasca, inseridos dentro do contexto da fé. O uso terapêutico que tradicionalmente se atribui à Ayahuasca dentro dos rituais religiosos não é terapia no sentido acima definido, constitui-se em ato de fé e, assim sendo, ao Estado não cabe intervir na conduta de pessoas, grupos ou entidades que fazem esse uso da bebida, em contexto estritamente religioso. Em outra condição se encontram aqueles que se utilizam da bebida fora do contexto religioso. Isto nada tem que ver com uso religioso, e tal prática não está reconhecida como legítima pelo CONAD, que se limitou a autorizar o uso da substância em rituais religiosos.

37. A utilização terapêutica da Ayahuasca em atividade privativa de profissão regulamentada por lei dependerá da habilitação profissional e respaldo em pesquisas científicas, pois de outra forma haverá exercício ilegal de profissão ou prática profissional temerária.

38. Qualquer prática que implique utilização de Ayahuasca com fins estritamente terapêuticos, quer seja da substância exclusivamente, quer seja de sua associação com outras substâncias ou práticas terapêuticas, deve ser vedada, até que se comprove sua eficiência por meio de pesquisas científicas realizadas por centros de pesquisa vinculados a instituições acadêmicas, obedecendo às metodologias científicas. Desse modo, o reconhecimento da legitimidade do uso terapêutico da Ayahuasca somente se dará após a conclusão de pesquisas que a comprovem.


Voltando aos comentários gerais: se entendi bem, não posso ir a um supermercado, comprar ayahuasca e ir tomá-lo, como tomo meu uísque, em casa.

E como o uso é ritual, e ritual no sentido religioso, não poderei, por exemplo, adquirir a substância no comércio e, chegando em casa, acender uma vela em cima da mesa, dançar em torno durante alguns minutos, e considerar isso como um ritual cético privado. Terei que submeter-me a uma hierarquia religiosa, o que, obviamente, é incompatível com a minha condição de cético.

Este texto é um compartilhamento de indignação: por eu ser cético, não posso ingerir ayahuasca, o que satisfaria minha curiosidade (acredito que continuarei preferindo vinho tinto e uísque, e que portanto a probabilidade de uso continuado seria remotíssima, mas isso não vem ao caso). Fico pensando por que posso pegar um hinário evangélico que tenho e tocar hinos na minha flauta doce (gosto de hinos religiosos) fora de qualquer ritual da igreja, e o estado não interfere. Seria mais coerente o estado proibir pessoas céticas de entoar ou tocar hinos em seus instrumentos, fora do contexto religioso e ritual.

Por meio deste texto também peço encarecidamente a algumas pessoas que me têm convidado, com certa insistência, para eu provar o ayahuasca que parem de fazê-lo, pois estar-me-ão induzindo a fazer algo, parece, ilegal, e portanto sujeito às penas da lei. De fato, diz o citado relatório final do Conad:

Devem-se evitar práticas que possam pôr em risco a legitimidade do uso religioso tradicionalmente reconhecido e protegido pelo Estado brasileiro, incluindo-se aí o uso da Ayahuasca associado a substâncias psicoativas ilícitas ou fora do ambiente ritualístico (o grifo é meu).

Obviamente, 'dentro do ambiente ritualístico' é inaceitável para um cético, pois equivaleria, na prática, a uma profissão de fé.

Além disso, sou pouco dado a, para o mero objetivo de ingerir um neurotransmissor, que, dizem médicos, é o que o ayahuasca é, submeter-me a autoridades religiosas de qualquer tipo, ficando sujeito ao critério de líderes religiosos e a rituais que podem simplesmente não me agradar (inclusive a seleção musical poderá ser de gosto discutível, e detesto gritaria). Uísque, ayahuasca, vinho, o lugar de tomar é em casa, sozinho de preferência, ou em frente ao computador (embora nem sempre funcione bem porque quando excedo nas medidas desando a testar a paciência dos amigos com indignação pouco equilibrada e, pior, posta em texto).

O que acho mais incrível é, como apontou uma pessoa da área jurídica que leu a primeira versão deste texto, não haver, aparentemente, uma lei dizendo de modo claro se a ingestão do ayahuasca é permitida ou não para todos os brasileiros. Apontou esse amigo que, não havendo legislação clara, fica a cargo de órgãos, como o Conad, dizer o que é recomendável ou não e, mais, o que é permitido ou não. Diante disso, pergunto, como fica aquele dispositivo constitucional:

Art. 5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
?

Então os que insistem em que eu experimente o ayahuasca por favor comecem por tentar provar-me que eu poderia, sem negar minhas convicções céticas, seculares e laicas, e sem fazer o equivalente a uma profissão de fé, e sem submeter-me a hierarquias religiosas, e a horários e condições de rituais definidos por outras pessoas, e sem violar meu gosto musical, tomar, dentro da lei, o, dizem, miraculoso chá. Experiência que teria pelo menos um efeito certo: o de remover a indignação que sinto, como pessoa laica, por não ter acesso a substâncias que o estado brasileiro laico - imaginem só, estado laico - faculta a pessoas religiosas.

Não sendo assim, por favor deixem-me afogar meu inconformismo na ebriedade do álcool.

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* Murilo Leme é carioca de Copacabana, nascido em 1942. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, colou grau em 1966, com tese de Mestrado no início da década de 70 sobre "A Estrutura do Conhecimento na Filosofia de John Dewey". Foi professor em tempo parcial na Faculdade de Filosofia da USP enquanto elaborava a tese de mestrado. Ao afastar-se da universidade foi funcionário do Banco do Brasil e do Banco Central, a maior parte do tempo na área de informática.

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